PCP: o estado das coisas

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Como quem busca notícias de uma pátria perdida, muitos de nós na diáspora comunista portuguesa mais ou menos acompanhamos o que se vai passando no PCP. É afinal o partido de Manuel Ribeiro, Carlos Rates, Bento Gonçalves, Rodrigues Miguéis, Bento Caraça, Pável, José de Sousa, Júlio Fogaça, Alex, Militão, Piteira Santos, Soeiro, Redol, Jofre Amaral Nogueira, Magalhães-Vilhena, António José Saraiva, Maria Lamas, Joaquim Namorado, Lopes-Graça, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira, de entre os já falecidos. Uma máquina de sonhos que amassou em sangue o melhor da esperança, vontade e inteligência de tantos e tantos dos nossos melhores homens e mulheres. Esse partido é naturalmente um património histórico e político que reclamo como meu e sobre o qual exijo contas. Não sendo eu, nessa matéria de património, animado por um espírito fetichista de conservacionismo estrito e puro, interessa-me apesar de tudo ir sabendo do estado da sua actual carcaça perimida. Sempre com uma secreta esperança (que não ouso já confessar a mim próprio) de ver despontar subitamente no “partido” algum lampejo de vida. Sempre com uma grande inquietação de que ele possa ter um fim catastrófico e pouco dignificante. Por qualquer razão, provavelmente uma razão não muito racional, suspeito que o mundo sem o PCP será muito mais árido e rarefeito, um vórtice de impulsos metalizados de uma indiferença lancinante, sem qualquer densidade especificamente humana. Um mundo em que homens e mulheres generosos vão andar perdidos em círculos, procurando desesperadamente o seu “contacto” sem o conseguirem encontrar. Eis algumas das razões que me levaram a ler as teses (projecto de resolução política) aprovadas pelo Comité Central com vista ao próximo 17º Congresso do PCP.

Houve um tempo em que o projecto estratégico do PCP de Álvaro Cunhal, ainda que tivesse de ser considerado já um compromisso classista baseado num escandaloso revisionismo teórico, tinha pelo menos a seu favor uma certa lógica, consistência e até alguma plausibilidade histórica. A linha de rumo do partido a partir dos anos 1960 não foi original. Entronca na doutrina da "coexistência pacífica" e na teoria do capitalismo monopolista de Estado, na variante desenvolvida pelo PCF, que depois viria a ter expressão no "programa comum" com o PS de Mitterrand (1972). É daí que vem o conceito de "democracia avançada". A ideia (em traços gerais) é que o capitalismo monopolista, assolado pelas crises e pela estagnação, tende naturalmente a acobertar-se sob a regulação do Estado. É, por assim dizer, uma inevitabilidade histórica este processo de transição suave e gradual, iniciado pelo “new deal” rooseveltiano e que teve uma grande expressão na Europa do pós-guerra. A social-democracia keynesiana vai criando um parque industrial nacionalizado e uma tecno-burocracia estatal cada vez maior e mais interventiva, na regulação económica, planeamento e no próprio abastecimento público. No fundo, caminha pelos seus próprios pés para juntar-se ao modelo soviético pós-estalinista. E os partidos comunistas ocidentais devem ajudá-la nesse caminho, buscando alianças com os sectores progressistas e iluminados da burguesia, seduzindo os quadros técnicos e as altas camadas profissionais para o seu “socialismo com as cores da nação” (1).

Desgraçadamente para o PCP, esse tempo já passou há muito. A União Soviética afundou-se, juntamente com todo o bloco periférico das "economias socialistas". A ofensiva neo-liberal nos países capitalistas (com início no final dos anos 1970) desmantelou todo o parque industrial estatal, desregulamentou os fluxos de capital e a actividade económica, privatizou até serviços e bens do domínio público essenciais. A social-democracia, como projecto de reforma social, eclipsou-se por completo. Mas o PCP lá continua, por inércia teórica, insensível aos ventos insensatos do mundo, sempre no seu rumo à "democracia avançada no limiar do século XXI", programa que é agora uma vez mais rotineiramente confirmado na “actualidade dos seus objectivos e propostas fundamentais” (tese 4.2.18). E, nesse propósito, buscando sempre o diálogo e a concertação com as outras forças democráticas e progressistas. Se, por desgraça, chegasse agora ao governo em "maioria de esquerda", é claro que seria apenas para completar o programa neo-liberal: mais privatizações, entregar a Segurança Social às seguradoras, mais flexibilização laboral, destruição do Serviço Nacional de Saúde, etc, etc.. Se Álvaro Cunhal assistisse a isso, em vez daquele movimento vigoroso com os antebraços que ele fazia, a assinalar mais conquistas populares, novos avanços democráticos, só tinha a registar mais retrocessos, mais concessões, mais capitulações.

Com a derrota e dispersão dos “renovadores” conseguiu evitar-se in extremis esse final de infâmia, mantendo-se o PCP um partido rigorosamente ingovernamentalizável nestes tempos neo-liberais. Mas nem por isso se redefine como força revolucionária apostada no derrube da ordem social e do Estado capitalista. Mantém-se como um partido do sistema democrático burguês, mas não do que existe realmente, senão de um outro que ele acha que deveria existir no seu lugar. Parece entender ser sua missão, sem lhos disputar, exortar a burguesia a dirigir o seu Estado e a gerir os seus negócios de uma determinada maneira, sempre no mais escrupuloso respeito das garantias constitucionais e guiado pelos melhores preceitos da virtude republicana, legalidade democrática e intransigente patriotismo. Que a burguesia lhe dispense tais lições não lhe parece ocorrer.

As ideias-base do PCP em matéria económica são aliás tão simplórias que, em boa verdade, não suscitarão o interesse de ninguém com um mínimo de formação e independência de espírito. Para ele, o capitalismo é excelente, enquanto for pequeno ou médio. Quando se torna grande é mau, porque passa a ser monopolista, se financeiriza e (pecado supremo) se internacionaliza. Aí tem que intervir o Estado como regulador, para proteger os capitalistas pequenos contra os grandes e os nacionais contra os estrangeiros, tudo no interesse da harmonia geral e de um saudável desenvolvimento pátrio. Mas eis aí, nas suas próprias palavras trapalhonas, o que tem a propor de concreto este partido que se diz fiel ao “marxismo-leninismo”:

«2.2.54. Para o PCP, o desenvolvimento económico e social do país exige uma ruptura com as políticas económicas de direita (...): uma organização económica onde prevaleça o interesse público e o interesse nacional; um forte e modernizado sector público e serviços públicos, a par de importantes empresas e sectores privados, de economia social e cooperativa e de um importante contingente de dinâmicas micro, pequenas e médias empresas; a defesa, valorização e desenvolvimento da produção nacional, promovendo a sua complexidade tecnológica e valor acrescentado; a valorização do trabalho e a qualificação do emprego.
2.2.55. O que torna necessária a intervenção do Estado na efectiva regulação da actividade económica, conforme o ordenamento constitucional e sem pôr em causa o papel económico real do mercado e a complementaridade concorrencial entre sectores e empresas; a reconsideração do enquadramento comunitário da economia portuguesa; a defesa da produção e do mercado português; a elevação do nível e perfil da escolaridade da população activa.»

Este projecto pusilânime e ridículo é além do mais hipócrita, pois que quem o formulou sabe de sobejo ser ele completamente irrealizável neste mundo em que vivemos, com os estrangulamentos por que passa actualmente o processo de valorização do capital e dentro das relações de poder fixadas institucionalmente no actual aparato estatal nacional, europeu e mundial. A questão não é mudar de políticas mas mudar a política, ou seja, conquistar o poder. Mas isso parece estar muito, muito para além das capacidades de compreensão dos nossos “marxistas-leninistas” (2).

Como que atingido por uma perda avassaladora, o PCP é uma formação política sem qualquer rumo discernível, apegada a uma carta de marear feita para um mundo inapelavelmente desaparecido. Uma força que vai cumprindo serviços mínimos em sucessivas trincheiras defensivas mas totalmente incapaz de esboçar sequer uma qualquer intenção de passagem à ofensiva. Por falta de projecto e de definição estratégica credíveis, antes do mais. Uma força triste, inconsolável, sempre secretamente à espera que um qualquer Zyuganov lhe transmita um novo raio de esperança vindo dos mesmos azimutes de onde sempre lhe chegou o calor dos ventos que ela tomava por solares. Muitos esperaram que o PCP entrasse em colapso imediatamente após a queda da União Soviética. Os trabalhadores e as massas populares que lhe eram fiéis conferiram-lhe porém, durante quinze anos, uma confiança suplementar a que o partido não soube corresponder minimamente. A percepção de que o PCP “não vai a lado nenhum” é agora generalizada, por iniludível, exercendo nas suas fileiras uma erosão tão segura e inexorável como afinal merecida.

Não é que o PCP não faça qualquer esforço para pensar e se recontextualizar nos novos tempos. Mas as novidades teóricas que nos trás, decididamente, não são boas nem auspiciosas. Eis a principal:

«3.1.42. (...) O grande capital nacional, inter-relaciona-se, entrelaça-se, interpenetra-se, integra-se e funde-se crescentemente com o grande capital transnacional, que ganha posições e domínio sobre a economia e a sociedade portuguesa. Não obstante as suas contradições e competições internas, a burguesia monopolista é o principal inimigo do proletariado e seus aliados, a luta contra ela é também uma luta pela independência e soberania nacionais, susceptível de chamar à acção comum sectores da própria burguesia.»

Aqui é tão importante o enunciado explícito como o sugerido. Em primeira linha, esta tese tem a ver com o incitamento que o PCP faz aos capitalistas pequenos e médios para encetarem uma luta de morte contra os grandes (teses 3.6.81. a 3.6.87.). Segundo esta nóvel concepção, a luta de classes irá assim ser transportada para o seio da própria burguesia (3). Mas por outro lado, também não se descurará inteiramente a hipótese de haver um ou outro grande capitalista genuinamente patriota e então (tirando-se maliciosamente partido das contradições e competições que existem entre eles) também esse poderá enfim ser admitido no grande campo nacional-proletário. Jesus Cristo disse que era mais fácil a um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que a um rico entrar no reino dos céus, mas com isso não quis afirmar que tal fosse completamente impossível. Venha pois mais um amigo e vamo-nos a eles, carago! S. Jorge por Portugal!

Marx disse algures que o nacionalismo é, muitas vezes, o último refúgio de um canalha. Não será aqui o caso. Aqui será antes o último arrimo de um mitómano apostado em ocultar a completa falência do seu projecto político. Para sermos justos, o PCP há muito tempo já que se tomou de amores pela padeira de Aljubarrota, lídima filha da nobre grei lusitana. Mas à medida que o seu projecto político ia sendo reduzido a nada, diluído em alianças inter-classistas cada vez mais amplas, era inevitável que ganhasse maior proeminência essa sua desgostante faceta chauvinista e isolacionista.

Não ocorre ao PCP que, aconselhando ele aos trabalhadores portugueses a formação de alianças “patrióticas” com a sua própria burguesia, igual justificação terão os trabalhadores espanhóis, franceses, alemães, marroquinos, paquistaneses, etc., para fazerem alianças similares contra os estrangeiros, que nesse caso seremos nós. É que o tal heróico bloco nacional não se dirige apenas contra o malvado do capital estrangeiro, mas sim também (senão sobretudo) contra os malandros dos trabalhadores estrangeiros, que são quem sofre sempre o embate em primeira linha e de peito aberto, na economia como na guerra que será a sua continuação por outros meios. Nem se diga que as alianças propostas são puramente defensivas, contra as agressões e depredações externas. No capitalismo não há alianças de classe puramente defensivas ou puramente ofensivas. Se se nega a entrada no mercado português a um produto argentino, pode com isso colocar-se em risco o emprego dos trabalhadores que o fabricam. E, além disso, arrisca-se uma retaliação comercial que pode vir a dizimar emprego português. Problemas semelhantes põem o investimento directo estrangeiro, as deslocalizações, as migrações, etc., etc.. O PCP acha que todas estas questões delicadas devem ser debatidas discretamente “entre nós”, trabalhadores e empresários patrióticos portugueses, na busca de um modelo de desenvolvimento de sucesso para o nosso querido país. Não vê interesse nenhum em que o sejam pelo próprio proletariado internacional organizado autonomamente, com base na sua solidariedade de classe e no seu projecto histórico de emancipação.

A concepção de internacionalismo do PCP é muito curiosa (4). É um internacionalismo puramente pela cúpula, entre direcções de partidos comunistas que acordam em trocar entre si amigavelmente informações, experiências e perspectivas, a título consultivo. Ora, mesmo nesses estreitos limites, essa frente de trabalho está hoje em dia praticamente paralisada porque o PCP não tem muitos parceiros internacionais em quem confie. A definição estratégica do partido será estritamente nacional, dentro do sistema de alianças de classe que a sua direcção entenda prosseguir. Ou seja, os trabalhadores comunistas portugueses podem bem contactar camaradas seus doutros países que daí não resultará qualquer “política”. A direcção partidária é impermeável a influências externas. As questões políticas do partido decidem-se dentro das fronteiras, segundo critérios estritamente nacionais, tendo na sua resolução mais influência as disposições – hostis, apaziguadoras ou amistosas - da burguesia nacional do que toda a classe trabalhadora mundial. Em linguagem pêcêpista isso diz-se assim:

«1.4.14. (…) A defesa da soberania nacional e a afirmação por cada povo do seu direito a determinar o seu próprio destino continua a ser um factor fundamental de resistência à globalização imperialista»

Para o PCP, todo o caminho de transição ao socialismo será feito num âmbito estritamente nacional. A “democracia avançada” à portuguesa caracteriza-se mesmo por uma grande agressividade na maneira como quer disputar para Portugal um lugar privilegiado no concerto das nações desenvolvidas. Na verdade, conforme se lê no ponto 4.2.17.1. destas teses, o próprio comunismo será uma sociedade “baseada na democracia política, económica, social e cultural” que assegurará finalmente… “o desenvolvimento e soberania de Portugal”. Arre!

O PCP ficou naturalmente encantado com o movimento “anti-globalização”, mas começou logo a torcer o nariz quando este se redefiniu como movimento por uma “alter-globalização” sob o lema ‘Um Outro Mundo é Possível’. Desde então não mais conseguiu ocultar o seu enfado e o seu despeito por estes novos ventos perturbadores. Como é óbvio, tem o mais declarado horror a partidos internacionais e a todas as “teorizações especulativas” (tese 1.4.17) sobre uma alternativa global e uma frente de luta mundial. Um destacado militante histórico seu propõe mesmo o estabelecimento de uma autêntica moratória indefinida de todo o pensamento teórico, sob o curioso pretexto de que “a tarefa prioritária, inadiável, consiste em somar o máximo de forças para combater o inimigo, sem lhe dar descanso” (5). Para este senhor, pensar uma alternativa à globalização neo-liberal pode causar… desmobilização na frente de luta anti-imperialista.

Ora o que se passa é que, instintivamente, este PCP “que nada esqueceu e nada aprendeu” sabe perfeitamente que, nesta fase, qualquer esforço de pensamento, ainda que ténue, encerra para si um perigo mortal. Como é sabido, o pensamento é um pó fino e dissolvente extremamente perigoso. Tem de ser tomado em doses muito moderadas e, sobretudo, sob uma rigorosa vigilância e prescrição. Mas sabe ainda mais do que isso. Sabe, por exemplo, como toda a gente, que a “democracia avançada”… não avança, que a sua estratégia é um completo beco sem saída. Mas mesmo assim aposta em porfiar no mesmo caminho, orgulhosamente só, à espera que uma rabanada de vento inesperada da história lhe traga um «jackpot» fulminante:

«1.4.12. É tão necessário rejeitar ilusões de facilidade e estar preparado para combates duríssimos e eventuais recuos e derrotas, como para desenvolvimentos positivos surpreendentes que só forças e projectos profundamente enraizados na sociedade e nas massas poderão acompanhar e dirigir.»

Quer isto dizer: mantenhamo-nos todos juntos na mesma rota que, mais lá para a frente, alguma coisa há-de acontecer. É divertido ver estes férreos deterministas históricos agora convertidos à ciência do caos, à indomável aleatoriedade e imprevisibilidade dos acontecimentos (tese 1.4.13). E isto para quê? É que, quando lhes sair então a tal imprevista sorte grande, eles esperam voltar a pôr nos carris, aqui neste cantinho à beira-mar plantado, o mesmo velho comboio infalível do progresso – políticas de esquerda, democracia avançada, socialismo - que nos trará enfim os prometidos amanhãs que cantam. Estamos agora, por assim dizer, numa fase histórica um pouco dodecafónica, mas não desesperem camaradas. Logo, logo, há-de vir mais um acorde agudo incompreensível e, a partir daí, vai voltar a nossa maravilhosa melodia tonal de sempre.

Infelizmente, a senilidade teórica, ideológica e doutrinal do PCP é um problema demasiado sério para ser tratado apenas com sarcasmo. Tem de ser estudada nas suas causas mais profundas, para que estas possam ser isoladas e lancetadas sem qualquer piedade. Isto se não quisermos ver mais uma geração de jovens revolucionários ser triturada e esterilizada nas suas entranhas.

A mediocridade e estagnação teórica, bem como a paralisia de ideias políticas e organizativas do PCP, têm certamente causas materiais. Há seguramente no seu seio um sistema de interesses estabelecidos – que vão do mero pão para a boca de muitos funcionários ao ego inflado de meia dúzia dirigentes e bonzos plumitivos - que exerce um enorme força inercial. Mas este depressivo estado de coisas é também, e talvez sobretudo, o produto de uma cultura de militância sufocante e castradora, plena de recalcamentos e interditos, propícia ao negacionismo. Aqui há dois níveis a considerar.

Em primeiro lugar existe, é claro, todo o pesado lastro cultural e político do estalinismo (6) e do formalismo tardo-soviético (brejnevismo), um sarro acumulado que será ainda bem difícil de limpar por completo. Mas suspeito que há ainda qualquer coisa de mais profundo. É uma cultura de raiz antropológica ancestral nos povos latinos e semitas, com claras influências cripto-cristãs. Uma espécie de ascetismo monástico e salvífico, caracterizado pela modéstia forçada, a fé providencialista, o auto-sacrifício e a negação da personalidade nas aras de um sacrossanto “colectivo” que se presta a todas as manipulações. Este tipo de cultura é profundamente incompatível com a crítica livre e o debate científico, acabando por estiolar a própria criatividade espontânea das massas e dos dirigentes populares.

E o pior é que todo este sistema tende a ser irreformável, porque impermeável à crítica. Quem enceta a sua crítica global, geralmente é porque já renegou. A sua crítica é então descartada porque considerada produto do ressentimento e da má-consciência (o que geralmente é verdade). Quem continua, fará apenas críticas parciais, localizadas e secundárias. Nenhum militante activo enceta uma crítica fundamental. E o resultado de tudo isto é que, mesmo sem coacção, temos um sistema em que a crítica não funciona livremente, os vícios não se reformam, as ideias erradas não se corrigem, os objectivos centrais não se rectificam mesmo perante a evidência irrecusável da sua completa falência.

Muitas e justificadas glórias já se cantaram ao PCP pela sua abnegada resistência ao fascismo e pela escola de luta (boa ou má, a única que então existiu) que constituiu para as classes oprimidas. Mas ainda está inteiramente por fazer o balanço do papel negativo, malsão, paralisante que foi também o seu para com o movimento de resistência popular em Portugal. E ainda hoje estamos a pagar a factura de tanta confiança cega, tantas palmas batidas em uníssono na marcha conjunta para um horizonte radiante de papel pintado.

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NOTAS:

(1) A teoria do capitalismo monopolista de Estado (CME) remonta as suas raízes em certas formulações muito problemáticas do próprio Lenine (p. ex: “…o socialismo não é outra coisa senão o passo em frente seguinte a partir do monopólio capitalista de Estado. Ou de outro modo: o socialismo não é outra coisa senão o monopólio capitalista de Estado usado em proveito de todo o povo e que, nessa medida, deixou de ser um monopólio capitalista”, em ‘A Catástrofe que nos ameaça e como combatê-la’, Obras Escolhidas em Três Tomos, Avante, Lisboa, 1978, pág. 195) e foi extensamente desenvolvida logo após a II Grande Guerra, num sentido reformista, entre outros, pelo economista soviético Evgueni Varga. Não gozando dos favores de Estaline, a consagração do CME teria de aguardar por uma conferência de 81 partidos comunistas realizada em 1960. E só seria compreensivamente retrabalhada pelos franceses já na segunda metade da década de 1960 - cf. Paul Boccara, 'Estudos sobre o capitalismo monopolista de Estado', Estampa, Lisboa, 1978.
O curioso é que o PCP, adoptando nas suas linhas gerais a teoria da transição do CME, manteve sempre um cerrado discurso moral anti-monopolista. Mas isso aí ainda vá que não vá. O que não se compreende de todo é que as mesmas objurgatórias contra o “grande capital” apareçam agora acompanhadas, não de propostas concretas de nacionalizações e expropriações, controlo operário, planeamento democrático, etc., mas de grandes desvelos de carinho e encorajamento para com os pequenos e médios empresários. A menos que o próprio horizonte teórico de uma transição pacífica e gradual ao socialismo já tenha sido discretamente abandonado, a favor do ideal neo-proudhoniano de um capitalismo dos pequeninos, autárcico e concorrencial. É que esta aparente ânsia de regressão a um estádio pré-monopolista, mesmo que no quadro de uma economia com forte intervenção estatal, dará certamente lugar a uma mais acentuada anarquia produtiva, o que é incompatível com o modelo de transição regulada da teoria do CME.

(2) Para sermos justos, cabe referir que os objectivos estratégicos declarados do PCP se desdobram em quatro etapas, a prosseguir e concluir sucessivamente sempre numa mesma linha de continuidade institucional, ou de “aprofundamento da democracia”. A primeira etapa passa por impor governamentalmente políticas “de esquerda”, em vez das políticas de direita que têm sido prosseguidas. É a esta etapa que corresponderão os pontos das teses acima citados. Consolidadas estas políticas, abrir-se-á a fase da “democracia avançada”, descrita no programa do partido aprovado no XII Congresso (Porto, 1988). Para lá da democracia avançada estará o socialismo, também aí sumariamente caracterizado. Por fim, virá o comunismo, “sonho milenário da humanidade progressista, sociedade sem classes, sociedade de abundância, de igualdade social, de liberdade e de cultura para todos”.

(3) Na verdade, também esta genial inovação não foi produto de qualquer reflexão teórica. Deveu-se, com toda a certeza, ao facto bem mais prosaico de que muitos “camaradas” (funcionários e outros), com o avançar da idade e do desencanto, foram-se fazendo à vida estabelecendo-se por conta própria. Como são inegavelmente excelentes pessoas e fizeram questão em manter-se em “contacto”, o partido resolveu estão abrir nova frente de trabalho, realizando em Janeiro de 2003 o primeiro “Encontro Nacional do PCP sobre micro, pequenos e médios empresários”. Por outro lado, os quadros de estatística sociográfica consultados mostram um sensível aumento desta categoria entre a “população activa” portuguesa. E tanto bastou para a incluir auspiciosamente na “frente social” (tese 3.1.50.), sem qualquer esforço de análise séria quanto às dinâmicas sociais, nacionais e internacionais, em que ela se integra. Em vez disso, dizem-nos: “3.1.32. O pequeno patronato vê cada vez mais destruída a miragem da independência económica. Aprofunda-se a sua integração, em posição subordinada, nomeadamente por via da subcontratação, na actividade do grande capital, por conta de quem explora o trabalho assalariado”. Ou seja, como o pequeno capital é cada vez mais dependente do grande… podemos contar com ele. Avança aceleradamente no seu seio um despertar de consciência que o fará alinhar decididamente nas fileiras operárias e populares.

(4) Leia-se, p. ex., Albano Nunes, ‘Questões do internacionalismo’, Militante nº 272, Setembro/Outubro 2004. É curioso ver como Nunes, a propósito da fundação há 140 anos da A.I.T., realça “a natureza intrinsecamente internacionalista da classe operária, do movimento operário, do partido revolucionário do proletariado”, para depois concluir o artigo negando tudo isso, apoiado em citações de Álvaro Cunhal. O “patriotismo e o internacionalismo” (por essa ordem) é que seriam agora os “traços inseparáveis da identidade comunista”. A tarefa mais urgente é combater o “cosmopolitismo sem raiz de classe e sem princípios que a ideologia burguesa incessantemente alimenta”. Ou seja, para Nunes, exactamente ao contrário de Marx, a classe trabalhadora é por natureza nacional. Por isso é que para ele o “cosmopolitismo”, que só pode ser burguês, tem como efeito necessário dissolver a identidade de classe dos partidos operários e comunistas. Nem vale a pena comentar a falta de pudor de se evocar directamente um conceito que esteve na base de uma campanha estalinista da mais sinistra memória.

(5) Miguel Urbano Rodrigues, ‘Sobre a situação internacional’, Vértice nº 117, Maio-Junho 2004, pág. 44.

(6) Sobre a matriz estaliniana da introdução do marxismo em Portugal, no âmbito temporal delimitado pelas reorganizações do PCP de 1929 e 1941, a melhor abordagem é António Pedro Pita, ‘Conflito e Unidade no Neo-Realismo Português’, Campo das Letras, Porto, 2002, pág. 37-79. Para mais detalhes, leia-se também João Madeira, ‘Os Engenheiros de Almas’, Estampa, Lisboa, 1996.

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