Memórias de Felinto Paulo de Oliveira Vasconcellos
1946 –
Seminário Arquidiocesano de São
José. Lembro-me da despedida. Muito choro. Aquele casarão antigo. As portas se
fecharam atrás de mim. Fui para um pátio. Um seminarista de nome Dirceu
Ferreira veio falar comigo, perguntando se eu era irmão dos seminaristas
Felippe, Luiz e
José Maria. O Padre Aloísio Ewerton era o prefeito da Divisão de Santo Estanislau. O Felippe ensinou-me a arrumar a cama. Nessa
época eu era mais baixo que ele. A Raymunda, que era
como a nossa segunda mãe levava leite toda semana. Gostava de receber a roupa
limpa, pois sempre vinha um bilhete, um pedaço de queijo e biscoitos. Os
colegas faziam fila para receber biscoitos. A comida no seminário era com muita
parcimônia, pois os recursos eram poucos. As visitas eram uma vez por mês das
13:00 as 15:00 hs. Iam chamar a gente pelo número. O meu número era 7, que tinha sido do meu irmão José Maria que estava em Roma
no Colégio Pio Brasileiro tirando filosofia. Fui para o coro (
Schola Cantorum).
Era contralto. O reitor Cônego João Baptista da Mota e
Albuquerque elogiou a minha voz. As férias em julho em Itaipava eram ótimas. Passeios...Futebol... Teatros ao ar
livre... Canções...Olimpíadas... Escaladas de morros... Leituras... Missa
diária...Terço... Orações da noite... Que fome nos dava o frio... Gostava do matafome que distribuíam nos teatros. Acho que era de
milho. Passei para o 2º ano. Tive que fazer 2ª época em Aritmética. Caiu
divisão de números complexos... Passei. Era o 23º da turma. Era o mais moço com
10 anos e não compreendia bem as aulas.
1947 -2º ano. 11 anos. No 1º
ano estudara Religião, Latim, Português, História Sagrada, Aritmética, Música e Geografia. Neste
ano estudei: Religião, Latim, Português, Francês, História da Civilização,
Geografia, Aritmética e Música. Obtive o 9º lugar entre os 24 colegas. Foi
nessa época que jogando “quebra-dedo” a bola atirada com força por um colega
entortou um dedo da minha mão direita para a vida toda. A rotina era a mesma:
acordava às 05:30hs, rezava o Te Deum,... Missa...
Aulas... Estudo...Recreio...Havia leilões para as Missões. Às vezes por um
vidro de geléia oferecia Cr$200,00. À noite às vezes
havia uma correria... Um se assustava no dormitório e todos saíam correndo sem
saber o motivo. Estavam construindo o prédio do
Seminário Maior, frente para a Avenida Paulo de Frontin,
mais tarde alugado para o Banco Nacional. Na época de chuva, brincávamos de
cravar ferrinhos da obra no chão. Jogávamos bola de gude.
Comíamos jambo. Soltávamos pipa e balões. Tudo tinha a sua época. Nas visitas
mensais o papai não ia, pois cansado da semana, aproveitava as tardes de
domingo para dormir um pouco depois do almoço.
1948 – 3º ano-
12 anos.. E a vida continuava. Estudei Religião, Latim, Português,
Inglês, História da Civilização, Corografia, Álgebra
e Música. Lembro-me do Padre Lapenda, professor de Corografia, criticando o governo do Getúlio Vargas,
comparando-o a uma parede toda suja, em que durante 15
anos, só uma parte havia sido limpa. Lembro-me do professor de Álgebra, Cônego
Cipriano ( o mesmo citado pelo Heitor Cony em suas crônicas), que também me ensinava piano, nos
dizendo que antes de tentar resolver um problema, deveríamos ler bem, para ver
o que era pedido. Uma vez pintei o quadro negro com tinta para sapato, tentando
melhorar o contraste com o giz. Havia o dentista Dr.
Guaraná, que cuidava também dos pombos e das abelhas. Admirava certos colegas
por sua aplicação aos estudos e sua piedade. Ficava impressionado com os
personagens dos livros que lia nas férias como o Winnetou
de Karl May.
1949 -4º ano. 13 anos.
Estudei Latim, Português, Grego, Francês, Inglês, História da Civilização,
Álgebra e Música. Passei em 6º lugar entre 19 colegas. Sai da Divisão de Santo Estanislau e fui para a de São João. O atual bispo de Volta
Redonda, Dom Waldir Calheiros era o encarregado. Os jogos eram mais
viris As carteira de estudo eram melhores. Um colega meu de nome Ari jogava muito bem
tênis de mesa. O futuro maestro Armando dos Prazeres (assassinado brutalmente), tocava muito bem
qualquer instrumento musical. Nas festas dos padroeiros era uma grande alegria.
Sempre passavam um filme e como gostávamos pois eram
tão poucos durante o ano. Nas cenas de beijo, colocavam um pano na frente do
projetor. Achava graça...Senti uma grande tristeza quando soube que o meu mano
Felippe tinha resolvido deixar o Seminário. Estava habituado a ele, sempre me
precedendo...
1950 – 5º ano – 14 anos Tirei
o quadro de honra, com prêmio. Procedimento, aplicação, Asseio, Ordem: 10.
Estudei Latim, Português, Grego, Francês, História do Brasil, Geometria,
Química e Música. Fui o 7º entre 17 colegas. Agora já estava na Divisão de São
Luiz. O encarregado era o Padre Arlindo. Disse-me que eu tinha tendência para
líder. Cuidava dos discos e da ginástica. Aos domingos à tarde ouvíamos músicas
clássicas. Ouvimos a Copa do Mundo por
um rádio colocado no alto de uma parede em Itaipava.
Lembro-me do Maracanã em construção quando ia de trem
para Petróplis.
1951 – 6º ano. 15 anos.
Passei para o Seminário Maior. Fui o 3º entre 16 colegas. Estudei Latim,
Português, Grego, Francês, História do Brasil, Trigonometria, Cosmografia,
Física e Música. Era o encarregado da s cerimônias nos vesperais de domingo e
fui o secretário da Congregação Mariana. Fui passar as férias em Paquetá. A
mamãe e o papai estavam em Roma para a ordenação do meu irmão José Maria. Senti
a atração de uma vida mais livre. Fiquei com medo de ser um mau padre e não
agüentar ficar sem casar. Resolvi sair. E assim, acompanhado pela Raymunda, deixei o Seminário, onde passara os seis mais bem
vividos anos da minha vida neste mundo...
No dia 09/03/2002, no Jubileu de Ouro do meu irmão
Mons.José Maria de Oliveira Vasconcellos, reencontrei-me com o Padre Motinha. Na foto de 1950 estamos nos extremos da primeira
fila.
1952 – Em casa – 16 anos. Rua
Desembargador Izidro, 46. Sentia-me livre. Parecia
que um peso havia saído de cima de mim.
O meu irmão Luiz Carlos logo me colocou no Curso Tuiuti.
Estava completamente por fora da conversa dos colegas. O meu sobrinho Affonso
me explicava o significado da gíria usada. O curso era na rua S. Francisco
Xavier e eu ia a pé para economizar uns trocados. Finalmente fiz os exames e passei para a
Escola Preparatória de São Paulo.
1953 – EPSP – 17 anos. Um
ambiente completamente diferente.Escola Preparatória de Cadetes de São Paulo.
Rua da Fonte, 91. Havia ainda duas outras, uma em Fortaleza e outra em Porto
Alegre. A sorte é que o meu irmão Felippe já era veterano e me ajudou bastante.
Pensei em sair mas consultando o Padre Sebastião que
estava em São Paulo, ele me aconselhou a ir em frente. Comecei a aprender a
jogar basquete com o Djalmir, que havia estudado no Tuiuti comigo. Ficava até escurecer a arremessar a bola ao
cesto. Como não tinha um terno ia fardado de bonde ou a pé à cidade. O
comandante da Companhia, Capitão Waldemar insistia para a gente dançar nos
bailes que eram realizados no refeitório por nós encerado. Assim aprendíamos a
dançar..Transcrevo uma carta recebida de minha mãe:
Rio de Janeiro, 19 de Novembro de 1953
Meu querido filho Felinto
Deus te abençoe.
Recebi a tua cartinha que muito me alegrou em
saber que goza de saude. Nós aqui vamos passando bem,
só o teu pai continua doente, mas graças a Deus está melhorando. Estivemos em
Paquetá cinco dias e ele melhorou muito, amanhã vamos para o sítio passar oito
dias. Dr Edgard diz que ele fica bom. Depois vamos fazer uma estação de água.
Quero ver se em janeiro vamos passar oito dias aí em São Paulo. Quando visitar
o Gilberto diga-lhe e ao Pe. Sebastião. Felinto, no
dia oito o Luiz Carlos ficou noivo da Dinah. Eu fui
com o Felipe e Maria Helena fazer o pedido. Almoçamos e à tarde teve uma mesa
de doce, fizeram um bolo de noiva muito bonito. Luiz deu um anel muito bonito,
eu dei um vidro de perfume. Ele ficou lá até agora. Ontem ele mandou uma caixa
de manga e uma caixa de doce, mas até agora não saiu o emprego. Reze para Deus
conceder esta graça. Meu Felinto, amanhã mandarei pelo correio 300,00
cruzeiros, tenha cuidado com tua saude, continue
sempre bonzinho e cumpridor com o teu dever para com Deus e a sociedade. Seja
um verdadeiro cristão. Estou com muitas saudades, espero que você venha em
dezembro passar uns dias conosco.
Felipe vem todos os sábados, mas ele disse
que agora só vem no dia 29, pois tem 10 dias de férias. Ele está forte e
contente. Estou pedindo a Deus que você já venha para Resende, assim ficará
mais perto de nós. Tenho que Ter paciência, não deixe de rezar o terço todas as
noites. Peço para você fazer uma visita ao Pe.
Sebastião e ao Gilberto e dizer que eu não escrevo porque com a doença do Zeca
estou sempre ocupada. Meu querido filho quero toda a
semana receber uma cartinha. O Pe. José Maria vai bem
e trabalhando muito. Todos os domingos ele almoça conosco. Amélia está morando
com a Joana. Todos os da família estão em paz. No dia 28 casa a Maria Amélia
minha sobrinha. Raymunda vai bem e manda-lhe lembranças. Vera fez a primeira
comunhão no dia oito. Choveu tanto que nós para irmos a Itacuruçá, fomos com muito
sacrifício. Vou terminar pedindo a Deus que te abençoe e te faça muito feliz.
Teu pai manda um forte abraço e todos de casa enviam saudades. As crianças da
Maria Helena estão um amor. A empregada dela saiu para a Ana. Eu não fui mais a
Gigoia, mas logo que eu voltar do sítio irei se Deus
quiser. Aceite um forte abraço da tua mãe que muito o ama e reza pela tua
felicidade. Que Deus te ilumine na tua vocação e que Nossa Senhora te proteja e
livre de todos os perigos.
Beijos e abraços da mãe, Umbelina
1954 – EPSP-
18 anos. No dia 04 de março de 1954 perdi o meu querido pai. Ele que
dizia que ia viver até os 100 anos, morreu com um câncer fulminante no
pâncreas. Senti muito e até hoje fiquei impressionado com a sua partida. Morreu
no mesmo quarto e na mesma posição de cama que a Violeta. Com os filhos ao
redor e o Padre José Maria dando a última benção. Segurando nos pés do papai
que não paravam de se mexer, senti o frio ir caminhando para o centro do corpo
onde com respiração ofegante lutava pela vida. De repente tudo parou. Todos
começaram a chorar. Do quarto o Affonso gritou: “Voltou a respirar!” Todos
suspenderam o choro. Mas logo foi confirmada a morte mas
então o choro já não foi tão intenso. Será que não foi a última brincadeira do
Seu Zéca, considerado por todos um grande brincalhão?
Na Escola Preparatória eu gostava de estudar inglês. Não me saí bem em Física
ensinada pelo coronel Colucci, que tinha em um
caderninho todos os exercícios resolvidos. O professor de português Quintanilha chamava a nossa atenção pelo seu modo original
de dar aula. O capitão Ner revolucionou a educação
física introduzindo novos exercícios. O presidente da Sociedade Literária e
Recreativa era o Amazonas. Admirava uns
colegas que tinham namoradas bem bonitas e levavam uma vida de festas e
namoros. Eu ficava de fora pois não tinha nem roupa
nem dinheiro. Flertava com uma loirinha chamada Karin
que morava em um apartamento que se via lá da Escola. Como não queria voltar a
São Paulo por namoro, fiquei assistindo perto dela ao desfile do IV Centenário
de São Paulo na avenida Nove de Julho por duas horas sem tentar iniciar uma
conversa. Às vezes eu ia visitar o meu primo Gilberto e a Maria Helena que
moravam no Brooklin, perto do aeroporto. Sempre fui
muito bem tratado. Andava de bonde e de ônibus. Admirava o trabalho do prefeito
Jânio Quadros na recuperação dos bondes da CMTC. Admirava as grandes mansões da
avenida Paulista. Fazíamos as marchas a pé até o Morumbi, na época um grande
matagal onde fazíamos exercícios militares. No refeitório um garçom meu amigo
me dava as sobras de goiabada. Num fim de semana
entrei na garagem e liguei um jeep, batendo na
parede. O tenente Luiz quebrou o meu galho e não fui punido. Admirava o colega Waldeck que estudava depois do almoço e conseguiu ser o
primeiro passando o Teberge. Nesta época já havia televisão em São
Paulo. Nas noites frias de São Paulo dávamos serviço de sentinela usando uma
capa chamada pelerine. Gostava de tomar leite com groselha nos bares de esquina
à noite. Gastava o meu dinheirinho também na cantina da Escola comprando doces Confiança. Quando o Getúlio cometeu o suicídio ficamos
de prontidão. Eu permaneci na encosta que dá para a Avenida Nove de Julho
apontando um fuzil. Com um colega mineiro de Astolfo
Dutra, o Brás Defilippo aprendi a levantar peso.
Fizemos também juntos um curso de radiotécnico
por correspondência. Até hoje nos correspondemos por e-mails na Internet. Essa
amizade foi para toda a vida.
1955 – 19 anos – AMAN –
Academia Militar das Agulhas Negras – Uma linda paisagem, instalações
modernas e amplas. Curso Básico. Cansativas instruções à tarde, sentado em
banquinho ou no terreno. Entrei para o
time de basquete da Academia. Tinha a regalia de uma alimentação reforçada e
não desfilava na desgastante Parada de Sete de Setembro. Em um feriado o time de basquete do
Curso Básico foi jogar em Petrópolis. Dancei e fiquei amigo da Elizabeth Gasper com quem me correspondi durante algum tempo. Neste
mesmo feriado uns colegas foram fazer uma peregrinação a Aparecida e na volta o
caminhão virou. Morreu um colega. Ficamos todos muito consternados.