Goethe
1749-1832

    O criado sobe as escadas e abre a porta do quarto. São seis horas da manhã. A pálida luz da vela obriga-o a tatear pelo aposento, com passos incertos. De repente, pára. Vê a pistola caída no chão. Pouco além, encontra-se o amo. O sangue empoçado ao redor da cabeça. Na escrivaninha, algumas folhas de papel: uma confissão desesperada de amor, uma paixão impossível por Charlotte. O jovem Werther está morto. Não sofre mais.

    Alemanha, 1774. Johann Wolfgang Goethe pensa na repercussão do trágico fim de Werther, que havia provocado uma comoção geral entre os jovens. Logo se multiplicam suicídios idênticos. O gesto se havia tornado, em pouco tempo, sedutor, e a moda, alarmante, a ponto de ficar conhecida como o mal do século. Goethe observa o que está acontecendo e sente-se profundamente amargurado. Afinal, Werther não tinha existido verdadeiramente, era apenas uma criatura da sua fantasia, um personagem de ficcção.

    Aos 25 anos, Goethe fica conhecido na Europa inteira, nos meios cultos do Novo Mundo e até no Oriente, graças ao “caso Werther”. Mas, apesar da fama, resta-lhe uma lembrança amarga do livro, condenado por todos aqueles que entendiam a vida como luta e conquista e não como renúncia e fuga, e pela igreja, que o colocara no Índice dos Livros Proibidos.

    Dois anos antes da publicação do livro, Goethe encontra Charlotte Buff. “Era uma dessas mulheres que, sem inspirar paixão violenta, exercia invencível encanto sobre cada um dos que a rodeavam.” Goethe não escapa à atração dessa mulher, que, sendo casada, não corresponde aos seus sentimentos. Enquanto escreve Werther, é Charlotte quem lhe serve de modelo para a personagem feminina do romance. Mas a obra se apóia também em outro fato: a surpresa e o espanto causados pela morte de um colega da Universidade de Leipzig, que se suicida para escapar a uma paixão sem esperança. Werther é, portanto, o fruto de uma experiência real e dolorosa, transfigurada através da imaginação. Essa é a razão por que o autor se refere ao romance que lhe trouxera popularidade como a uma “confissão geral”. Afirmação verdadeira para toda sua obra, tão interligadas estão, nela, vida e ficção.

    A experiência amorosa que lhe inspirara Werther não fora a primeira nem a última. Dos quinze aos 74 anos Goethe apaixona-se por diversas mulheres.

    Goethe nasce em 28 de agosto de 1749, na cidade de Frankfurt-sobre-o-Meno. O pai, conselheiro da corte de Frederico II (1712-1786), é homem austero e culto, entusiasmado pela ciência e amante das artes. A mãe, vinte anos mais jovem que o marido, é uma pessoa alegre e disposta e tem especial talento para contar histórias. Wolfgang diria anos mais tarde que herdara do pai “a conduta séria da vida” e, da mãe, “a natureza alegre e o gosto de narrar”.

    Aos dez anos de idade Goethe presencia a ocupação de Frankfurt pelos franceses. O menino ouve falar a língua e entusiasma-se com referências e os elogios feitos aos escritores franceses: Molière, Racine, Voltaire. A cultura francesa, e não a alemã, portanto, é que incentiva a vocação literária de Goethe, que já ensaia os primeiros versos.

    Precocidade intelectual, sim, mas também precocidade sentimental. Aos doze anos o garoto tenta o namoro com a filha de uma atriz. Apesar da insistência, a menina não quer saber dele. Três anos depois, volta a se apaixonar: Gretchem. Goethe passa as noites insone e agitado pela paixão, mas ainda não terá êxito. Em 1765 viaja para Leipzig, onde inicia os estudos de Direito e conhece Anette Schömkopf. E dessa vez tudo parede ir bem: é correspondido em sua paixão. Mas, com o passar do tempo, a vida em Leipzig vai aborrecendo Goethe. Não está satisfeito nem com o  que escreve nem com o ambiente tradicionalista e acanhado, que não reconhece seu talento. Afasta-se de tudo e prende-se desesperadamente a Anette. Torna-se impaciente, violento, provoca cenas de ciúme que deixam a amada cada vez mais desgostosa. Enfim, ela o abandona. Leipzig perde tudo e qualquer atrativo para o jovem romancista. Volta a Frankfurt, doente e abatido. Durante a convalescença, sente-se invadido por uma religiosidade mística que fundamentaria suas posições artísticas e literárias posteriores, particularmente o Fausto: uma Tragédia, As afinidades Eletivas e o Segundo Fausto. Reanima-o definitivamente a perspectiva de uma nova viagem.

    Estrasburgo, 1770. O olhar segue as linhas da catedral e colhe silenciosamente as íntimas conexões daquela obra-prima da arquitetura gótica. Gostaria de ficar ali, deslumbrado, para sempre, observando o jogo de formas e luz, revelação plástica de uma poderosa genialidade.

    Com a intenção de prosseguir os estudos iniciados em Leipzig, encontra em Estrasburgo os elementos decisivos para sua formação cultural. A catedral, cuja visão tanto o impressionara, despertaria o gosto e o interesse pelas obras alemãs medievais. E um acontecimento ainda mais decisivo o aguardava: O relacionamento com um professor da universidade, Herder. Sob a influência desse filósofo, Goethe liberta-se dos rígidos padrões clássicos franceses, interessando-se pela cultura grega, pelo Oriente, pela Idade Média e por Shakespeare. Herder também lhe abre os horizontes para a valorização da poesia popular.

    Na época, os jovens intelectuais percebem que Herder não é o expositor de um rígido sistema filosófico, e sim o fermento  de novas idéias para a cultura alemã e universal. Reúnem-se, então, em torno dele. O grupo, conhecido por “geração de 1750” – Goethe, Shiller, Klinger, Lenz, entre outros -, inicia um movimento sem precedentes, o Sturm und Drang (denominação extraída do título da peça de Klinger, que significa “Tempestade e Ímpeto”). O movimento opõe-se ao Iluminismo, que domina a cultura européia da época. Este afirma o predomínio da razão sobre os demais valores do homem e do mundo. Aquele coloca a vida como valor supremo e recusa todas a normas que, embora válidas racionalmente, podem limitar o desenvolvimento individual. O Sturm und Drang rompe de modo violento com os conceitos e esquemas que regulam as relações individuais e sociais, políticas e morais. Repercute profundamente na arte, proclamando a liberdade absoluta do artista é que ditaria as normas para suas obras. O ímpeto com que os iniciadores do movimento defendem essas idéias suscita, na Alemanha, uma verdadeira revolução em todos os campos da cultura e da vida. Na literatura a aceitação é completa e apaixonada.

    São então publicados Werther e os primeiros dramas de Goethe. Em seguida, aparece Os Bandoleiros, escrito por Schiller. De um momento para outro, “a geração de 1750” projeta no exterior uma literatura que nunca fora significativa. E agora os papéis se invertem: os escritores alemães passam a influir sobre a produção de outros povos.

    O Sturm und Drang é um movimento de caráter nacional que desencadeia o Romantismo. Goethe é a figura mais destacada, por sua força vital e criadora, ao mesmo tempo reflexiva e turbulenta. Torna-se a personalidade mais notável de Estrasburgo, e sua fama ultrapassa as fronteira da Alemanha. Suas obras são discutidas e aplaudidas. É o começo impetuoso de um projeção literária que não haveria de declinar.

    Durante o período em que vive em Estrasburgo, Goethe costuma fazer excursões para coletar documentos sobre a poesia popular. Numa dessas buscas, conhece Friederike Brion, a filha do vigário de uma aldeia das proximidades. Friederike reúne a graça da mulher citadina e a vitalidade ingênua da camponesa. Mas as tarefas que o haviam levado ao encontro com a jovem acabam por obriga-lo a bandonar Friederike. Deve continuar o trabalho em outros lugares. A imagem de Friederike continuaria em sua memória, e ele a imortalizaria na personagem feminina de Fausto, Margarida.

    Goethe viaja muito e freqüenta meios sociais cultos. Durante o inverno de 1774 está de novo em Frankfurt. Certa noite é convidado a assistir a um concerto na casa de um rico negociante. Não presta atenção à música, nem mesmo às conversas cultas sobre literatura. Só tem olhos e ouvidos para Lili Schönemann, filha do anfitrião, de apenas dezesseis anos. Torna a vê-la alguns dias depois e percebe que Lili corresponde aos seus sentimentos. O poeta fica de tal modo inflamado que quer casar-se imediatamente. Porém a família de Goethe se opõe, porque a moça não pertence à nobreza. Perturbado pelo motivo e pela oposição, fica num estado de profundo abatimento, e prefere não lutar por seu amor. Deixa Lili, embora viesse a reconhecer, no fim da vida, que nunca estivera tão perto da verdadeira felicidade quanto na época daquele amor por Lili.

    O fracasso na vida amorosa faz oposição a sua fama. Em 1775 do duque Carlos Augusto convida-o para administrar o ducado de Weimar. Não se afasta, porém de sua produção literária, agora inspirada por Charlotte de Stein, por quem se apaixona. Mas Charlotte não o ama. Extenuado pelo trabalho, abandona Weimar em setembro de 1786. Viaja para a Itália realizando o sonho cultivado desde a infância, quando contemplava as vistas de Roma nos quadros da sala da casa paterna. Durante os dois anos que passa na península Itálica, busca o segredo de uma vida simples, ardente, colorida, como a descrita nas Elegias Romanas. Em 1787 regressa a Weimar. Numa manhã ensolarada uma jovem bate à porta de sua casa: vai em busca de um favor para o seu irmão. Seu nome é Christiane Vulpius, tem 23 anos e é operária numa fábrica de flores artificiais. Goethe contempla as linhas delicadas do seu rosto e os longos cabelos ondulados. Sente o coração tocado pela beleza e pela simplicidade da moça. Surge mais uma paixão amorosa: essa se tornaria real e duradoura. Christiane torna-se a companheira de Goethe, de quem tem um filho no dia de Natal de 1789. O casal teria mais quatro filhos, que morreriam logo após o nascimento. Mas somente dezoito anos depois Goethe resolveria casar-se com ela.

    Em Weimar, o duque lhe havia retirado a maior parte das funções administrativas. Agora só se ocupa dos assuntos culturais. Sua grande preocupação é o teatro, que dirige a partir de 1791. Leva à cena algumas de suas peças. O público não as aprova. Faltam a seus dramas a vibração e emoção, ao contrário do que acontece com os de Schiller, ídolo das platéias. Schiller é admirador de Goethe, e manifesta o desejo de poder desfrutar sua amizade. Com essa intenção é que lhe escreve uma carta em junho de 1794, convidando-o a colaborar numa revista que fundara. Goethe aceita o convite “com alegria e de todo o coração”. Trocam correspondência assídua e as cartas mostram a influência benéfica que cada um exerce sobre o outro. Nesse período a produção literária de Goethe aumenta, é fértil e intensa. Escreve Hermann e Dorotéia e Os Anso de Aprendizagem de Wilhelm Meister, entre outros.

    Em 1805 os dois amigos adoecem simultaneamente. Goethe recupera-se aos poucos, mas o estado de Schiller se agrava. Quando Goethe recebe a notícia da morte do amigo, confessa que acabara de perder metade de sua existência. Para se consolar, tenta concluir um drama que Schiller deixara inacabado, Demetrius.

    Em 1808, aos 59 anos, publica Fausto: uma Tragédia. É uma reelaboração da História do Dr. Johanners Fausto, trabalho de autor anônimo publicado em Frankfurt em 1587. Goethe dá nova dimensão à lendária figura do Fausto, que vendeu a alma ao diabo. Reúne todas as audácias de que é capaz, não apenas o mal como o bem, demonstrando que o diabólico e o celestial se insinuam nas relações humanas de forma terrível e perigosa. Assim como a de Fausto, a vida de Goethe também oscilara entre a sombra e a luz.

    Em 22 de março de 1832, aos 83 anos, Goethe está sentado em uma poltrona, ao lado da cama. Seu estado de saúde havia piorado nos últimos dias, por causa de um resfriado. Começa a amanhecer, mas o quarto ainda está escuro. Goethe respira com dificuldade. Faz um sinal ao criado, como se estivesse pedindo algo. O criado aproxima-se e ouve suas últimas palavras: “Abram a janela do quarto, para que entre mais luz”.


Retirado da Coleção "Obras Primas"
Ed. Nova Cultural

 

Aos Leitores Amigos

Poetas não podem calar-se,
Querem às turbas mostrar-se.
Há de haver louvores, censuras!
Quem vai confessar-se em prosa?
Mas abrimo-nos sob rosa
No calmo bosque das musas.

Quanto errei, quanto vivi,
Quanto aspirei e sofri,
Só flores num ramo --- aí estão;
E a velhice e a juventude,
E o erro e a virtude
Ficam bem numa canção.

 

Livro de Leitura

O mais singular livro dos livros
É o Livro do Amor;
Li-o com toda a atenção:
Poucas folhas de alegrias,
De dores cadernos inteiros.
Apartamento faz uma seção.
Reencontro! um breve capítulo,
Fragmentário. Volumes de mágoas
Alongados de comentários,
Infinitos, sem medida.
Ó Nisami! --- mas no fim
Achaste o justo caminho;
O insolúvel, quem o resolve?
Os amantes que tornam a encontrar-se.

 

Que assim te afague...

Que assim te afague, ó meu Amor, e te ouça
A voz divina --- como é possível?!
Impossível parece sempre a rosa,
O rouxinol inconcebível.

 

Epigrama (Veneza, 1790)

"Maus, para a esquerda!" mandará um dia o Juiz,
"E vós, Cordeirinhos, ficareis aqui à direita!"
Muito bem! Mas há uma coisa a esperar ainda dele; então dirá:
"A vós, Sensatos, quero-vos mesmo em frente!"